sábado, dezembro 07, 2002

DESAMPARADOS

Certa vez avistei um menino que chorava compulsivamente encolhido sobre a calçada. Percebi logo que se tratava de uma criança carente. Aquela cena me comoveu profundamente e decidi ir até o garoto para saber o que estava acontecendo e, quem sabe, fosse capaz de auxiliá-lo.

Mal se ouvia o garoto falar. Entre soluços tentava me dizer que estava com fome, que não tinha conseguido dinheiro para comprar algo para comer e que ainda teria que voltar para "casa" e levar algo para alimentar seus irmãos. Sua mãe iria lhe dar uma surra...

Não pensei duas vezes. Saquei uma nota de cinqüenta reais (tudo que tinha na carteira) e entreguei ao garoto. O garoto conteve um pouco o choro, apesar dos soluços. Agradeceu e partiu.

Naquele dia fui para casa bem. Havia ajudado uma pessoa em extrema necessidade. Quem sabe se todos ajudassem? As coisas poderiam ser melhores...

Alguns dias se passaram. Caminhando novamente perto de casa vejo novamente uma criança chorando, chorando muito. Rapidamente reconheço aquela mesma criança que havia ajudado uns dias atrás. Enquanto observava o menino reparei que ele lançou o olhar desesperado sobre mim. Parou de chorar subitamente. Saiu correndo.

Fiquei alguns instantes sem saber o que pensar... Idiota! Gritei para mim mesmo. Um golpe! Havia caído no conto da criança desesperada e desamparada. O garoto era um dos atores mais convincentes que eu já havia visto.

Desde este dia aprendi a lição: "Nunca mais ajudarei alguém com dinheiro. Se for o caso, posso até dar algumas bolachas, mas dinheiro, nunca mais!". O que dizer dos mendigos que recebem dinheiro e, ao darmos as costas, entram no primeiro boteco e pedem uma dose de pinga?

Pausa...

O que é isso? Que pensamento mais mesquinho. No mínimo é um pensamento muito simplista e desprovido de qualquer noção de realidade. Foi o que pensei ao ouvir a narração de um colega advogado que contou o caso da triste e malandra criança. Não menciono o fato de meu colega ser advogado por não gostar deste tipo de profissional. Não. Digo isso apenas para contextualizar. Trata-se de uma pessoa que sempre teve acesso aos estudos, a uma boa alimentação, enfim, a uma vida muito tranqüila do ponto de vista material. No seu caso específico, verifica-se que se encontra em ótimas condições financeiras.

Começamos um debate. Eu não poderia deixar de comentar uma afirmação daquele tipo. Uma lição de vida???

Acho que é muito difícil julgar determinadas situações. Simplesmente não temos conhecimento de todos os fatores que podem levar uma criança a cometer um ato daquele. Há de se pensar que, em primeiro lugar, a criança não foi criada sob as mesmas condições que meu amigo advogado. Talvez aquela criança não tenha tido uma orientação adequada. Seus pais podem ter sido ausentes ou talvez, por ignorância (retire daí qualquer sentido pejorativo) também não tivessem condições de educar a criança adequadamente.

É muito provável que está criança passe fome realmente. Talvez não estivesse assim no momento que pediu o dinheiro, mas, certamente, já passou muito mais fome na vida do que meu colega advogado. Acredito que se não fosse assim, esse garoto não usaria deste tipo de artifício para conseguir algum trocado. Ah! E quem pode confirmar que aquilo foi mesmo uma representação?

E o mendigo que toma algumas doses de pinga? Será que não ajuda a enganar um pouco o frio? Talvez o mendigo já tenha até conseguido comer alguma coisa. Por que vocês acham que crianças cheiram cola na Praça da Sé? A droga ajuda a enganar a fome e dão uma ilusão de alívio. Obviamente, não quero levantar bandeira em defesa do alcoolismo ou do uso de cola de sapateiro para melhorar a condição de vida dessas pessoas. Simplesmente acho que as coisas devem ser analisadas sob um espectro mais amplo. É fácil analisar as coisas superficialmente e promover julgamentos tolos. Temos que ajudar sim a mudar a situação, mas precisamos conhecê-la melhor para que saibamos como atuar. Eu mesmo acho que não tenho noção completa do que significa a condição de miséria em que vivem muitas pessoas. Afinal de contas, sou engenheiro e tive acesso a boas escolas, a bons restaurantes. Ao menos busco conhecer e não tecer comentários condenatórios.

Meu colega advogado ainda me disse uma coisa que não deixa de ter certo sentido - Posso escolher para quem doar meu dinheiro. Quero ajudar e quero ter o direito de escolher como e quem. - Ele continuou - Uma empresa, ao escolher uma instituição filantrópica para destinar recursos, faz questão de saber como o dinheiro será aplicado e, em muitos casos, chega até a fiscalizar sua utilização. Por que não pensar da mesma maneira quando dôo dinheiro? Como não posso fiscalizar, opto por não doar dinheiro. - complementou meu amigo.

Fui obrigado a concordar com o exemplo da empresa. No entanto, não acho que funciona da mesma maneira quando decidimos ajudar uma pessoa que está necessitada. Uma pessoa que esteja passando fome certamente não gostaria de depender do nosso capricho de verificar se ela está mesmo falando a verdade e realmente fará bom uso do nosso dinheiro. Se ela estiver mentindo, mesmo assim, teremos ajudado alguém em piores condições que nós. Não acho que estarei encorajando a pessoa a ser malandra. O tempo se encarregará de ensina-la a não mentir e se alguém ajudá-la a ter uma melhor condição de vida talvez um dia pare de ludibriar as pessoas de "bom coração".

Estava quase esquecendo de um argumento utilizado para que possamos perceber como a ação do garoto poderia ser repugnante. Existem muitas pessoas sem recursos que não precisam enganar as pessoas para conseguir ajuda. É verdade. Ainda assim, não considero de nossa competência julgar as pessoas que utilizam desta tática. Não é esse nosso papel. Nosso papel, na minha opinião, é ajudar e educar. Como já disse, não conhecemos todos os fatores que levaram aquela pessoa a tomar aquela atitude. Será que se estivéssemos em seu lugar não faríamos a mesma coisa? Difícil dizer...

Acho que devemos operar em duas frentes, a da assistência imediata e a da educação. Na primeira tratamos de uma situação emergencial. Matar a fome de alguém no momento necessário é um bom exemplo disso. Já quando falamos de educação, nos referimos a disseminação de conceitos éticos e de cidadania. Também devemos fazer isso. Não podemos esquecer que devemos atuar das duas maneiras.

A lição que aprendi ao longo do tempo é bem diferente daquela apresentada pelo meu amigo:

Quando puder ajudar, ajude. Do jeito que for. Simplesmente ajude.

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